texto por / text by LUIS MARIA RODRIGUES BAPTISTA fotos de / photos by ANA M. MOURÃO e/and LUIS MARIA RODRIGUES BAPTISTA
_Todos nós já fomos surpreendidos por uma janela ou uma porta entreaberta com vista para um qualquer espaço interior. Passamos na rua e de rompante invadimos obliquamente o hall, a cozinha, a sala ou o quarto de alguém desconhecido.
Sem querer vislumbramos fragmentos desse espaço interior e somos tentados a entrar. Diminuímos o passo, recuamos conforme a intensidade do vislumbre realizado e preparamo-nos para ver. Entrar melhor. Quando não o conseguimos resta-nos a intensidade pressentida daquilo que julgamos ter visto. Completamos a nossa vida com os vislumbres de soslaio que realizamos sobre os espaços interiores alheios, com os segredos, as histórias, as alegrias, as paixões e os medos, que imaginamos do lado de dentro das portas e das janelas entreabertas das fachadas das casas e dos prédios dos espaços exteriores que diariamente percorremos. Todos os espaços interiores são paralelos entre si. Quando se intersectam iluminam-nos e cegam-nos. Acontece aquilo que teimamos em chamar de Histórias de Amor.
A Ana M. Mourão, é um (espaço interior) virado do avesso.
Mora em Algés de Cima na parte de cima da Rua Alegre, num espaço interior abaixo do nível médio da rua, sem qualquer possibilidade de vislumbre a partir do exterior. Acedemos-lhe como se acede ao espaço secreto de uma cave(rna) mágica em espiral. Em silêncio. Entramos e descemos. À medida que o fazemos atravessamos em primeiro lugar o espaço intermédio onde descansa e só depois acedemos ao amplo piso subterrâneo onde tudo acontece: espaços, objectos, projectos, trajectos, pinturas e desenhos interiores. Muitas imagens. Uma bela cidade interior. Rodeada de sombras e cores, de telas, tules e papéis, de caixas de ferramentas, livros e engrenagens, de múltiplas possibilidades de criação de imagens, Ana M. Mourão é uma desenhadora/pintora de linhas trémulas. De muitas linhas que a enrodilham e repetem obsessivamente
É o negativo de quem com ela partilha as ruas do amplo espaço interior que habita: O Nuno. É ela que está encarregue de fazer a actualização imaginária quotidiana do atlas interior (colectivo de mapas e cartas interiores) do nosso concelho. Diariamente em silêncio, durante horas a fio, Ana M. Mourão, Sísifo das linhas trémulas, tece cartografias do absurdo, como terapia, refere. Sem outra explicação. Apenas como terapia, repete. Desenha mapas de linhas, plenos de curvas de nível, labirintos, padrões lúdicos e distorções ópticas. Vislumbres de paisagens em alto e baixo relevo, mais ou menos interiores, que de imediato quem a visita passa a sobrevoar e a mergulhar por existirem espalhados por todo o espaço que habita. Como um vírus que à medida que o tempo passa, alastra todo o corpo do espaço em redor, paredes, pavimentos, cadeiras, tampos de mesa, tecidos e o corpo de quem se ar/risca a entrar em contacto com todos esses espaços interiores contaminados: a Ana M. Mourão, a cave/rna mágica e todos os objectos interiores que enovela e encasula terapeuticamente. Tornam-se espaços de pisar: paisagens-tapete, lugares de assento: paisagens-cadeira, enquadramentos: paisagens-janela, espaços de vestir: paisagens-tecido. Lugares de contemplação que rapidamente interagem com o nosso corpo e se infiltram nele labirinticamente. É ar/riscado entrar neste espaço sem sermos assolados por uma sensação de alteração constante de tamanho. Provocada pelos desenhos de linhas-limite, o amplo espaço interior subterrâneo e o frenesim silencioso das ruas da cidade interior onde vive e trabalha. Dá aparência a domínios invisíveis e indizíveis, que até ao momento em que aparecem ninguém tinha conhecimento da sua existência, onde começavam ou terminavam. Nem ela. Topografias, Geografias, Morfologias, Tipologias...Impressões Digitais de corpo todo. Linhas. Muitas linhas. Emaranhados de linhas quase sempre distinguíveis e que pontualmente em momentos de intensidades e vislumbres geográficos acidentados se con/fundem e enrodilham em espaços negros intricados, em convulsão trémula, para depois se libertarem de novo e continuarem o seu trajecto paralelo entre si. Guia do silêncio. Ouvimo-la quando exercita, pratica, veste, entra, mimetiza as paisagens a que dá aparência e as linhas-limite se transformam em fios de Ari(ana) que nos conduzem pelos labirintos que pinta. Nesse estado de serenidade profunda que tremula muitas vezes como qualquer espaço interior profundo, pleno de movimentações ocultas, a Ana M. Mourão traça os domínios universais do nosso concelho: segredo absoluto do espaço interior desta pintora-arquitecta que à semelhança de Dédalo constrói o labirinto privado de cada um de nós. Ela é o cliente, o arquitecto, o labirinto, o prisioneiro, o fio condutor e quem o sabe sobrevoar à altura ideal. Admira-o de cima e deixa-se cair nele repetidamente.
É assim que o continua e intensifica secretamente, a partir da cidade interior onde mora, poética e terapeuticamente, algures na parte de cima da Rua Alegre, em Algés de Cima, no nosso concelho. O fio de Ari(ana) é o fio do pensamento. É ela que nos pensa a todos enquanto desenha. Que nos contempla. Que dá aparência aos espaços onde diariamente vivemos sem questionarmos a sensação de novidade ou de estranheza que sentimos ao percorrê-los. É ela que aumenta, intensifica e altera todos os espaços que cada um de nós individualmente percorre e que suportam os gestos circulares e espiralares mais importantes da nossa vida.
A Ana M. Mourão é o actualizador terapeuta dos limites reais e ideais de cada um. À medida que o tempo passa ela não se cansa da tarefa mitológica de que está incumbida: actualizar ininterruptamente as fronteiras imaginárias do concelho que habitamos que não páram de se expandir. Cada acontecimento individual na vida de cada um altera-as imperceptivelmente. É este o processo de aparecimento poético inconsciente das cartografias interiores que desenha em actualização permanente. Sempre desactualizadas. Só ela as consegue ver. Os espaços interiores que regista são organismos vivos em expansão contínua. A mão trémula que pinta/desenha nunca conhece o príncipio ou o fim da linha que regista o novo limite resultante do reflexo das movimentações exteriores no interior do corpo dela. Por causa delas descarrila, salpica a folha com borrões de tinta. Rapidamente integra-os e assume-os como reverberações exteriores que não controla, nem quer. Treme. Faz-nos tremer quando pensamos que aqueles espaços-reflexo que regista somos nós. Em rolo, em grandes, médios e pequenos formatos de papel ou tela, em paredes, pavimentos e tectos, objectos, pedaços de tecido, o atlas interior do nosso concelho vai aparecendo. Vai sendo desenhado fragmentadamente por ela. Não está ainda disponível ao olhar colectivo. É exclusivo daqueles que partilham o espaço com ela. Portadores de informações exteriores. Ajudam-na a zelar pela qualidade poética dos limites que actualiza permanentemente. Um dia destes a Ana M. Mourão, vai aparecer.
Tremeluzir serenamente. Não sei se a veremos. Porém, estamos nela com todas as nossas movimentações internas. A Ana M. Mourão é um espelho(poético)! É o espelho exterior de qualquer espaço interno. A cidade interior que habita na Rua Alegre, é o grande labirinto resultante de todos aqueles que lhe acedem. Antes de descermos podemos vê-lo de cima. Fazemos parte dele. Não o sabemos. Aparece-nos como um vislumbre interior. Só na subida de saída, porque saímos sempre dele, ao contrário do que acontecia no labirinto da mitologia grega, maravilhados com tudo aquilo a que acabamos de aceder, reconhecemos mapas antigos de linhas-limite tecidos noutros suportes, pendurados na parede junto ao tecto e que já tínhamos visto, distraidamente na descida de entrada sem nos vermos reflectidos neles. Só na subida de saída, quando nos viramos de costas para ver tudo pela última vez em modo de despedida, consciencializamos que realmente já ali tínhamos estado. Somos dali. Nesse instante de clarividência vislumbramos verdadeiramente o espaço interior onde estamos voluntariamente presos. Percebemos que o que estivemos a apreender o tempo todo em que ali permanecemos, foram os novos contornos dos espaços interiores que vamos encontrar lá fora quando terminarmos de sair dali. Fomos distinguidos com a grande ordem poética da linha trémula.
A linha-limite de levantamento dos limites imaginários dos espaços interiores do nosso concelho em actualização e expansão permanente, que não se deixa circunscrever por nenhuma outra anteriormente fixada e que se reflecte infinitamente a partir do espaço interior de quem lhe dá aparência em regime de enclausuramento. Obrigado Ana e Nuno!
IMAGINARY OEIRAS_OEIRAS IMAGINÁRIA